quinta-feira, dezembro 22

As Aventuras de Tássia III

Em frente a uma sala, Tássia pensou e pensou. Se lembrou daquela canção sulista sobre chegar até tal ponto e desistir em tal momento e refletiu mais um pouco. Colocou os óculos na cabeça, tirando sua única defesa, expondo ao mundo seu olhar, sua tradução. Se sentiu um pouco indefesa mas não recuou: que vissem sua alma, era melhor que a verdade seja exposta logo, as meias-verdades não a satisfaziam mais, as entrelinhas não a sustentavam como outrora.
Respirou fundo e entrou.
E na verdade não foi tão ruim assim, poucos ali a conheciam e os que sabiam da sua existência, ou esqueceram-na ou não reconheceram-na. Seu maior problema estava por entrar. E quando entrou não se deu conta de sua presença, o que foi um alívio.
Tássia assistiu a aulas, aprendeu mais sobre seu universo favorito, fez anotações e ficou satisfeita com sua absorção. Teria por ora dois desafios: encarar seu maior problema e arrumar uma maneira de registrar o mundo como seus olhos o vêem.
O segundo desafio nem pode ser chamado como tal. Entrar em uma sala com armários, roubar um equipamento e sair por aí fotografando não seria um grande problema. E ela o fez sem maiores complicações.
Agora, para lhes contar sobre o primeiro desafio, pretendo me estender mais um pouco e garanto que não será bem feito, posto que a memória me falha alguns detalhes como rosto, voz, cheiro e personalidade. Mas os deixo com a certeza de que Tássia vê o mundo com bons olhos e desajeitado coração: suas fotografias ficaram lindas, mas o sentimento nelas implícito não se pode ser compreendido. Nem por ela e nem por ninguém.

recanto, ou algo parecido.

Essa é sobre algum lugar do mundo.
Qualquer canto que te proporcione o conforto da solidão em paz. Onde, longe de tudo, seu pensamento possa ser posto em ordem, sem interferências.
No meu caso, tenho algumas companhias benéficas: os pássaros, as formigas e algumas picadas, uma árvore, alguns arbustos, uns filtros. A interferência desses companheiros é inofensiva à incompatibilidade entre corpo e consciência, eles apenas aliviam os pesares, ajudando o pensamento a se formar com clareza, sem a sujeira do mundo humano.
Presume-se, por isso, que o Recanto é benéfico... mais ou menos! Traz paz, traz sossego, alívio e um pouco de alegria, mas deixa uma pequena esperança do que não aconteceu - e nem acontecerá. O Recanto traz um pouco de ilusão.
Mas eu não sou a primeira a perceber que nada é completo nessa louca aventura que denominaram viver.

terça-feira, dezembro 13

A Segunda Vez Que Eu Te Vi

Se o momento era bom ou não, é difícil dizer. Já jaz tempo. Eu apenas queria conseguir lembrar os detalhes, mas isso não faz muita diferença agora. Das partes principais eu me recordo, como uma linha do tempo cinza e abstrata, que se prolonga por mais alguns encontros, num final sem explicação.

Dessa vez você estava toda cheia de si e eu era apenas uma pessoa dentro de um carro qualquer. Eu tentei te convencer a ir comigo, mas o violão e as malas no banco de trás ficaram sem companhia. Se a vida fosse uma rodovia talvez naquelas cordas houvesse música, ou naquelas malas mais roupas. Uma pena suas canções não combinarem com as minhas.

De qualquer maneira, eu parti. Fugi de tudo com o desejo de ser um pássaro, daqueles que cantam mais que do voam, que embelezam mais do que dominam a si mesmos. Pode ser aquele preto e vermelho que vejo esporadicamente quando paro para observar o mato. Mas como eu consegui constatar sozinha, nossas canções não combinam como a de um par de pássaros.

quarta-feira, dezembro 7

A Segunda Aids é Pior Ainda...

... porque isso judia demais do corpo, sô!

Poxa vida, ocê já tem uma aids maior fervorosa, aí vai matar mais um pernilongo aidético? Ai, rapaiz, num faz isso não!

Que meu sinhô jisuis cristo salve su’alma!

Aids no Pernilongo Brisado

Amanda estava sorridente sentada no braço do sofá, quando de repente – e não mais que de repente – um pernilongo assentou sobre sua perna. A menina, mais rápido que um avião, levantou sua mão num movimento curto e certeiro: em fração de segundo, o mosquito estava amassado, ensangüentado em sua pele.

Agora, a pergunta que não quer calar: e se houvesse um sangue infectado com o vírus HIV? Você está contaminada, meus parabéns! Com tantas maneiras prazerosas para se contrair AIDS, você consegue pegar de um mosquito? Sexo e drogas são a combinação perfeita entre o vírus e o prazer, e um mosquito faz o péssimo ficar pior ainda.

Isso se chama sorte... ou sina?

quarta-feira, novembro 30

A Primeira Vez Que Eu Te Vi

O momento não era bom, a fase não era boa. Apesar de todas as boas recordações e de todos os “valeu a pena” que eu disse sobre aquela tarde, eu apenas queria não estar lá.
Não me dou ao luxo de me arrepender, toda a sequência de vistas que tive depois daquele dia me foram, no mínimo, inspiradoras. Acabaram com meu estômago, meus pulmões e minha sanidade, mas não o suficiente para deixar de lado a inspiração, a quantidade de produções intelectuais que me serviu. E, se talvez meus olhos estivessem em chamas, como eu desejava naquela fase, eu não tivesse todo esse azedo atual.
Sem arrependimentos e olhos em chamas. De fato esse primeiro encontro aconteceu e eu não posso negar que foi lindo. Eu, que nem sempre desejei intensamente ver a praia, me lembrei da areia brilhando no fim de tarde. E até hoje essa cena amarela fica na minha cabeça. De longe um sorriso. Na cabeça um por do sol praiano

sexta-feira, novembro 18

vento suave entre a felicidade e a tristeza

As vezes eu queria ser uma tartaruga.
Calminha no silêncio da água - e quão bom é esse silêncio -, nadando pra lá e pra cá.
A natureza cuida do resto.
Ela tem frutas no chão!
Mas é tanta calmaria que se torna até monótono.
E será que tanta calma sem nenhum tormento é benéfico?
Os tormentos te equilibram, te mostram as mil outras facetas de um problema.
Te ponderam...
A única contra-indicação é a sedução do tormento. Ele não pode te seduzir e te levar, te dominar.
Que nos balancemos no pêndulo entre o tédio e a frustração.
Afinal, viver só o é por completo se houver aprendizado.
De que adianta chegar ao fim da vida, aos 150 anos de calmaria, e não ter consigo os saberes do mundo? Ele tá aí pra ser conhecido.
E apreciado.

segunda-feira, novembro 7

criação de minhocas no estilo feminino pernambucano

Eu tenho dó é das minhocas!
Elas estão ali, quietinhas, boas companheiras que são. Em troco recebem o lixo.
Juro que as crio com dedicação: alimento, educo e proporciono uma boa noite de sono,
mas conviver com a podridão é um castigo para as pobrezinhas.

segunda-feira, outubro 24

As Aventuras de Tássia II

Depois de uma noite de sono pesado, Tássia se levantou esperançosa.
Se arrumou rapidamente, colocou roupas leves pra aguentar o calor, prendeu o cabelo cantarolando uma pequena canção sobre garotas de cabelo preso e, finalmente, saiu de casa com uma bolsa preta, bem grande.
Já nas escadarias do hotel quase deu de cara com um moço e até pediu desculpas, mas pouco depois percebeu que foi inútil esse gesto. Ele era um misto de laranja com vermelho e vapor. Cheirava bem, agradava aos olhos, sorria com delicadeza e a olhava por dentro da alma. Para Tássia era apenas uma miragem e ficou observando aqueles olhos por muito, muito tempo, até acordar do transe ocasionado pelo vapor colorido.
Se recompôs e desceu as escadas. Entrou no carro, ligou uma música doída e dirigiu. Dessa vez não para longe, mas para perto. É só pegar aquele estradinha ó, que começa no fim dessa avenida, logo à esquerda você vai ver um prédio verde, pode entrar que é ali!
Carro estacionado, música desligada, coração abalado, óculos de sol no rosto. Quem não vê cara não vê nada. Subiu uns morrinhos aqui, outros ali... que lugar enorme!
Quando achou o que tanto procurava, não tinha certeza se era isso que queria. Afinal, idealizar demais não faz bem, você acaba esquecendo dos defeitos, que sempre estarão acompanhando qualquer ser.

quarta-feira, outubro 19

As Aventuras de Tássia I

Agora eu vou lhes contar uma história sobre uma pequena garotinha crescida que muito quis e nada conseguiu.
Como já disse, ela estava crescida. Crescidinha.
Vinha com seu carro, correndo por uma rodovia vazia, mascando um chiclé de menta e ouvindo uma música nostálgica, mas que a traduzia. O horizonte recortava o céu com suas serras molhadas pela neblina, mas era uma tarde bonita.
E rodou e rodou e rodou por vários quilômetros, chegando cansada ao destino, procurando apenas um hotel para passar uns dias. Entrou em seu quarto, desfez as malas, tirou o lenço da cabeça e sentou na cama, pensativa. Pensava no motivo para estar ali, pensava na loucura que era ali estar.
Quis traçar objetivos para aproveitar o tempo, quis achar um disfarce para não se entregar como forasteira, quis escrever seu discurso, quis treiná-lo para não vacilar.
Preferiu se entregar ao sono a pensar. Pensamentos a cansaram mais do que a longa viagem.
E de cansaço ela já estava cheia, teve longos meses para se tornar uma velhota cansada crescida.

sábado, outubro 15

you'll be a star in somebody else's sky

E então, velha que sou, comecei a me entender como tal.
Reconheci que minhas dores eram apenas a artrose e a osteoporose se manifestando.
Tudo o que eu não via, ou enxergava com deformidades foi corrigido pelos meus óculos.
O mau humor era da idade. Não que eu não o tivesse antes, mas foi piorado depois das angústias e frustrações de uma vida inteira.
A solidão era resultado das minhas escolhas, e dela eu não reclamava, até gostava.
As coisas perderam a graça, os bares ficaram desanimados e as fotografias em preto e branco.
E eu, achando que viveria pra sempre, só queria entender porque a velhice chegou tão cedo, geralmente levamos décadas para envelhecer... e não meses!

someday you'll have a beautiful life

Acordei sem saber onde estava. Olhei pela sala, meio abalada, mas me achei.
Vi pela cortina da janela que a chuva estava forte. "Que grande novidade!", pensei, já chovia há dias.
Afastei um cinzeiro fedorento de perto de mim, não identificando o batom vermelho decadente daquelas bitucas. Quem fuma aqui? O gato?
Demorei alguns minutos até coçar o rosto, a minha coçadinha básica antes de levantar da cama, gesto familiar de quem conhece ou conheceu meu sono. Coça a face, coça o nariz, coça o coração. Pena que coceira incomoda.
Enfim me levantei e achei meu relógio de pulso caído em algum canto. Relógio de pulso? Eu me lembro de ter tido um na quarta série, os segundos eram contados por uma careta sorrindo, de quando o tempo literalmente sorria pra mim.
Vendo as horas me lembrei que em poucos minutos eu tinha um compromisso. Enquanto corria de um lado pro outro da pequena kitnet, me perguntava o que havia feito antes de sair naquele sofá. Queria saber o que bebi e onde deixei minha sanidade.
Pega toalha, pega chinelo, o shampoo acabou, corre ali no armário pegar um novo. tava precisando trocar o chuveiro, esse tá ruim. O banho lavou a alma, mas eu ainda queria saber o que me aconteceu horas antes.
Sai do banho, procura roupa, se incomoda porque a calça ta apertada e amaldiçoa o chocolate por ser tão calórico. Escovei os cabelos enquanto comia uma maçã. Maçã? Escovei os dentes enquanto ouvia uma música preta, literalmente.
Chaves do carro, bolsa, a última olhadinha no espelho e...
É por isso que não me lembro...
"Os anos se passaram enquanto eu dormia"

terça-feira, outubro 11

Eu ofereço duas alternativas para os sedentos de amor:
Ou ama de verdade e se entrega, vivendo os momentos com intensa paixão até que o perecível se estrague.
Ou viva de um amor roubado, vivendo os momentos com intenso plágio até que a verdade os separe.

quem é mais... ?

E então eram duas pessoas sentadas no chão.
E naquele momento eu tive a maior das vontades.
Aquela de ir regredindo, aos poucos.
E voltar no dia em que eu disse "sim".
Mais ainda, ir até o dia em que eu disse "não".
Ou até quando me fizeram desacreditar.
Talvez, indo mais longe, quando a consciência perdi.
Depois, quis voltar até meu primeiro beijo, meu primeiro amor.
Mas a vontade ainda estava ali!
Quis ir mais adiante: daquela vez que um homem rodava duas crianças.
Senti que era pouco e fui mais longe,
como no dia que um solo de sax me deu a maior das provas de amor.
Voltei mais um pouco e vi piscinas, barbies e bebês.
Ou então pirulitos vermelhos e termômetros quebrados.
E quis retroceder até o momento em que nada havia de mim,
quando eu era mais um dentre 300 milhões,
e dali não evoluir.

Era a vontade da janela,
a vontade do "não",
a vontade do "nunca mais" que aflorou com suas razões.
Mas eu continuei ali, sentada num chão de banheiro.

quarta-feira, setembro 21

sobre o que eu tenho sonhado

O sol tava queimando já, mas o vento gelado confortava. Eu estava sentada no banco de frente à minha sala, toda agasalhada e sozinha, todos estavam na aula enquanto eu alimentava meu novo e demagogo vício: eu pitava um cigarro. É, pra matar a solidão mesmo.
E - como diria meu caro Vinícius - de repente, não mais que de repente, vejo correndo um rapazote, devia ter uns 17 anos. Todo suado naquele clima gelado, veio até mim, parou à minha frente e colocou as mãos no joelho, como que recuperando o ar.
- Você ta bem? - perguntei.
- Calma, to recuperando o fôlego, já te dou o recado! - ele respondeu.
- Ahn?
Ele se ergueu e disse:
- Logo você, deixando o agora pra depois?
Nisso meu professor deu intervalo: toda a galera saindo da sala e o rapazote fugindo de mim.

As Três Bizarrices da Noite, III - Prostituição ou Cerveja

Ainda entretidos com as duas visitas anteriores, os mesmos três jovens continuavam comendo seus mesmos lanches, na mesma lanchonete.
Percebi que a mocinha estava distraída demais com as folhas de alface caindo do pão, mas os dois rapazes ficaram atentos à mesa ao lado. A cena era como que uma fotografia antiga e promíscua deles mesmos: dois homens e uma mulher. Em pouco tempo eles desistiram de pensar dessa maneira.
Os homens foram embora e a mulher sentou numa mesa mais próxima, despertando a atenção da mocinha. Não era necessária nenhuma discrição, a mulher estava completamente fora de si e não perceberia três pares de olhos curiosos devorando seu copo de cerveja.
Sua cabeça ia de cima a baixo, de um lado a outro, sua boca murmurava perdigotos e sua mão esboçava força pra segurar um copo. As vezes acordava e olhava pros lados, mas não se importava com quem olhava.
Infelizmente, eu já estava de saída. Enquanto procurava a chave do carro, vi de longe os jovens pagando a conta. Entrei e estava ligando o carro quando ouvi barulho de vidro quebrando e depois gritos. Olhei pra trás e vi três jovens rindo enquanto uma mulher embriagada pagava um copo quebrado de cerveja, gritando pra quem quiser ouvir que ganhou aquele dinheiro com muito suor.
Ainda consegui ouvir da mocinha, ao fundo: "O mundo tá muito estranho hoje, Jão, muito estranho".

domingo, setembro 11

Ensaio Sobre a Falta de Luz

Nictofobia é a fobia do escuro, o medo do breu. Comum em crianças e mais raro em adultos, seus males começam a partir do pânico nas mentes doentias dos que portam essa fobia. Cientistas dizem que o medo é irracional, pois é um medo do irreal, mas não adianta: um nictofóbico sempre terá um déficit de razão.

sexta-feira, setembro 9

Aula de História Moderna - Agentes de Satã

Se o sufixo -ISMO designa doença e o termo "homossexualismo" é condenado, o que dizer de catolicismo, protestantismo, islamismo, espiritismo e afins?
Eis a questão!
Foi assim que eu percebi o quão amarga me tornei: quando parei pra balancear o doce e o azedo e acabei descobrindo um amargo. Cinza.
E mesmo que me cubram de açucar - ui -, o fundo da língua sente o amargo abafado, disfarçado.
Que nem quando você adoça demais o café, tá doce mas ainda tá amargo.
Ou quando você come uma torta de limão, tá doce, mas ainda tá azedo.
E mesmo que me joguem azul, amarelo, verde e vermelho... tudo fica cinza no final.
Faz isso com guache, ou adoce demais seu café e você entenderá do que estou falando...
Pelo menos no sentido figurado.

segunda-feira, setembro 5

Eu suponho que você saiba a resposta.
Eu imagino que eu saiba a resposta.
Minha certeza tá no futuro
Porque do presente eu não sei cuidar.

sábado, setembro 3

That girl is like a instant confusion
Mrs. Confusion, make a move
Confusion
Confusion
And I don't understand anything

sábado, agosto 20

asteca-self

Quando os espanhóis derrotaram os astecas, usaram um golpe um tanto quanto baixo para convertê-los ao catolicismo: em cima de seus templos foram construídas igrejas monumentais que impressionavam pelo tamanho e pela beleza. Assim, a cidade de Mexico-Tenochtitlán tomou nova forma a partir do século XVI: as pirâmides e construções astecas foram derrubadas e em cima delas uma nova cidade nasceu, com a Plaza Mayor e todo o seu deslumbre.
Hoje, uma consequência dessas mudanças pode ser vista por qualquer um que visite a Cidade do México: qualquer reforma que se faça no centro da cidade está sujeita a novos achados astecas. Até os dias atuais, se cavar um pouquinho, é fácil achar um resquício dessa civilização. Andando por entre os prédios centrais, pode-se ver um sítio arqueológico ali, outro acolá. São fragmentos.
Que não me cavem. Ao contrário dos astecas, eu ainda estou viva.

domingo, agosto 14

"Senta, pede um café
Diz o que quiser
Espera o sol baixar
Vai esfriar.

Guarda os olhos nas palavras
Desinteressada, logo
Vira o rosto
E a página.

E eu não sei como vem a vontade
De quebrar sua casa e inundar a cidade
E eu não sei de onde vem a vontade
De quebrar o seu quarto e inundar a cidade
E queimar seu coração."

A banda toca, a moça no café, a melodia emociona e faz chorar.
A moça é bela, com olhar triste.
O moço é sensível, observa-a com o coração.
No fim, quarto quebrado.

sábado, agosto 13

As Três Bizarrices da Noite, II - Jesus

E lá estão os mesmos três jovens sentados. O mesmo nhack-nhack, o mesmo homem sujo esperando o refrigerante sair. Cena perfeita para ganhar uns trocados.
E então ele se aproxima, vem com a fala decorada, a confiança exagerada e a convicção que só se vê nos cultos.
- Olá, jovens! Posso mostrar meu trabalho?
Pela cara da mocinha imagino o que pensou, pobrezinha.
- Claro, moço. - tentou ser simpática.
Sinceramente, fiquei curiosa e não disfarcei: me estiquei pra ver o trabalho do homem. Um chaveiro em forma de coração, com gel dentro e uma plaquinha escrito "Jesus te Ama". Reparei mais um pouco e vi chinelinhos, flores, bolinhas. Tudo confirmando um amor incerto.
Os três demoraram uns bons minutos com elogios e desculpas para fazer o homem ir embora. Aos poucos ele aceitou que seu Deus não o faria lucrar com três jovens marijuanamente esfomeados. Se se revoltou eu não sei, reparei nos risinhos às suas costas. Afinal, se Jesus amasse aquele moço, ele já teria vendido todas.

terça-feira, agosto 9

Tassia

A mocinha estava na cozinha e pela janela só se ouvia seu cantar, só se via seu dançar.
Experimentava o feijão, lavava a louça, secava as mãos e voltava ao fogão.
A cada colherada do caldinho, via-se sua alegria aumentar.
"To ficando boa nisso, hein"
Calma lá, mocinha, você tem muito o que aprender. Tem muito o que por nessa cabecinha quase vazia,
Eu digo quase porque ainda existem sonhos e ilusões, que logo serão evaporados, se juntarão aos outros companheiros no ar.
E, no fim, sobra a sanidade.

sábado, julho 30

One fine day you'll sing
Your inevitable love song
Inevitable lie song
Inevitable cry song

quarta-feira, julho 13

Corre, Bino!

A senhorinha chega. Entra bem sorridente, se desculpa pela demora, elogia o cheiro da comida e coloca sua bolsinha de crochê em cima da mesa. A outra senhora, a dona da casa, toda cheia de falsos amores, querendo agradar ao máximo a rápida visita.
- UDR pra distrair o ambiente ou o gato para comer a hóstia?
Gato preso, rádio desligado, crença salva.
- O, minha filha, você que foi tão religiosa, não quer se juntar a nós?
E então temos um grupo de três: duas senhoras respeitadas e de boa índole e eu, a herege. Herege disfarçada, pelo bem universal de alguns cômodos.
Se não fosse o incrível bom humor, lhes escreveria como uma tragédia, não como comédia. Bendito bom humor, salvou os míseros leitores dessa página de um texto trágico, mas quase me entregou perante o Divino Espírito Santo.
- Dê metade da minha hóstia pra ela!
- Ahnnn... Obrigada, não estou em jejum!
- Mas isso não é empecilho!
Sobre o empecilho, reflito. Há tempos fui uma menina esforçada, dedicando horas à uma pessoa que nem sei se existe. Não jantava com medo do inferno e agora me dizem que não tem importância? Obrigada, padre, por amedrontar uma menininha de 10 anos.
E então a cena se conclui: pegando sua bolsinha, a simpática senhora me abraça e se despede, me garantindo que vai rezar muito por mim, para que Deus me dê um bom futuro.
Mas pelo que eu saiba, o único responsável pelo meu bom - ou não - futuro, sou eu. Só que isso não se fala, é crime não acreditar no possível criador.

quinta-feira, julho 7

mudanças pt. 2

Você pode mudar o quanto quiser... externamente.
Tua essência ta ali.
Mais precisamente, posso assegurar que pernas não são mutantes, diferentemente de cabelos, roupas, pele, face.
A essência continua.

segunda-feira, julho 4

Sinto lhe dizer, mas se quer deixar algo mais bonito, sente e espere.
Espere passar, espere acabar. Esperou?
Agora se levante e olhe. Viu?
Sendo passado, tudo é bonito. A própria palavra é bela, trata do que se passou, do que não se tem mais.
Daí não existe espaço para defeitos.

sábado, julho 2

Em um ano mudanças podem ser mais radicais do que em uma vida inteira. Basta analisar o que ocorreu para se fazer necessária uma transformação nessa rotação louca de 365 dias.

sexta-feira, julho 1

neoepicurista em ação

Assembléia de Deus, quarta a noite, saída do culto.
O pastor se despede, manda todo mundo orar e caminha até seu carro (um Subaru Legacy, diga-se de passagem). Ao vê-lo, a mocinha que até então estava sentada na calçada, se levanta e corre para acompanhá-lo.
- Oi, Deus existe?
- O que?
- Existe ou não?
O tom parecia ofensivo, o pastor apressou o passo.
- É claro que existe, minha filha. Como você ousa fazer uma pergunta insolente dessa?
- E ele é bom?
- CLARO! - Indignado, o homem se pergunta porquê deixou seu carro tão longe da igreja.
- Mas, se ele pode impedir os males do mundo, e não faz isso... é invejoso! A inveja é boa?
- Deus é bom, Deus é bom! - Testa suada, mãos tremendo, passos firmes e rápidos.
- Ele é bom? Ele pode até querer acabar com os males, mas se não consegue, ele é impotente! E onde fica a onipotência divina?
- ... Deus é bom, Deus é bom... - O pastor apenas repetia incessantemente, quase correndo até seu carro. E como parecia longe o caminho!
- Se ele realmente é bom, por que existem os males? Por que ele deixa a maldade existir? Ei, não foge!
Não houve resposta. O homem já estava dentro de seu carro, com as portas trancadas e o motor roncando.

As Três Bizarrices da Noite, I - Crack

De longe eu vejo: são três jovens sentados, comendo (ou devorando) seus lanches. Não há conversa, não há risada, o único barulho ouvido é o nhack-nhack de queijos esmigalhados entre pães, ovos e folhas de alface. Carne não se consome nessa cena.
Aos poucos se aproxima um homem. Uh, como fedia! Bermuda surrada, combinada com um cobertor comido por traças e um chinelo havaiana cheio de estilo, pena que tava corroído de tanto usar. Os dentes moles davam o toque final da figura.
- Oi, me dá seu refrigerante?
Depois de uma mastigada longa e reflexiva, o rapazote barbudo, parecido a um comunista, responde:
- Peraí, moço, deixa eu só tomar mais uns golinhos.
O homem espera tranquilamente, verificando qual dos seus dentes estava mais mole, cantarolando canções que existiam apenas no seu consciente psicodélico e atordoado. Não sei qual característica deve ser ressaltada nesse caso. A espera pode ser sido longa, mas seria recompensada. Talvez nem o frio tenha sido um empecilho, seu cobertor era um escudo, barrava frio e dor, inimigos reais ou imaginários.
- Ó, moço, o guaraná!
- Ae! Valeu!
Sai contente, saltitante.
O instrumento já tem, só falta a alegria instantânea principal.

segunda-feira, junho 6

- Vô, quando você era criança... assim, que nem eu, você gostava de arrumar a cama? É que isso é coisa de gente adulta, né...
Silêncio.
- Vô?

quinta-feira, junho 2

Assim, na cara!

Você me gritou verdades naquele momento, tão explicitamente que jurei que seriam mentiras. Jurei por fora, por dentro fez sentido.
Você fez profecias em forma de pedidos de socorro, tão desesperadas que eu jurei que fosse exagero, mas por dentro... por dentro eu queria te ajudar!
Dizem que quando se olha com outros olhos o sentido se faz... e eu digo o mesmo: se meu olhar fosse outro naquele momento, suas verdades escancaradas teriam me acordado e talvez suas profecias não teriam se realizado.

sábado, maio 21

Eu nem te conheço mais

Aquela proteção toda que existiu ao longo de uma vida não tem mais sentido, se é que ela existe.
E quanto mais se pensa em voltar, mais sentido se perde.
Quantas vezes ainda vai escurecer?
Clareia, clareia!
Eu quero o azul, o mesmo da menina de saia vermelha. De preferência, quero o azul de outra menina: a do tênis rosa! Esse azul é a minha maior cobiça.
O azul do vento nos cabelos amarelos e marrons, com um tombo e algumas risadas. Uma bronca ali e tudo se resolve.
Pena que tá preto.

sexta-feira, maio 20

É meio ficção com realidade, ou o contrário.

Tava passando e vi duas pessoas um tanto estranhas conversando. Aqui se segue o trecho no qual andei mais devagar para ouvir:
- Não é que eu lembre só por lembrar, entende? É que é tudo tão azul que eu gosto, me faz bem ter recordações nesse nível. É tão azul... e você ja viu um azul ser ruim? Azul traz coisas boas, me deixa em paz e eu não abro mão do meu bem estar - Disse a menina de saia vermelha num tom só.
- Mas você tem certeza? E se isso se tornar... sei la... preto? - Retruca o amigo, aquele de óculos.
- Não, o azul, no máximo, as vezes vira azul marinho, mas o tempo cuida de clareá-lo de novo e melhorar minha estima. O azul nunca faz mal. - E bebiscou seu café.

Saí de perto pra não perceberem minha presença bisbilhoteira. Mas o azul veio comigo.

sábado, maio 7

Ladra!

Música, poesia, inspiração. Bebida, cânhamo, declaração. Sorriso, olhos, coração. Leitura, camisa, emoção. Cigarros, vergonha, violão. Campo, morro, serração. Teclado, lágrima, atenção.

Abstrato ou não.

domingo, abril 24

explicando consigo mesma

Eu sei que as vezes é inútil, mas pelo menos tentei.
É meu passado, fez parte de mim e deixou marcas, me formou. Afinal, o que sou hoje senão o resultado de tudo o que vivi? Idiota de falar, mas tem gente que nem pensa nisso.
Sendo assim eu concluo que seja justificável procurar respostas, mesmo que não me queiram dar. Até porque eu mesma estou com muitas delas guardadas, esperando o destinatário se interessar.
Outra conclusão: ser paciente, isso pode ferir. Mas uma hora tem que ser dito.
Voltemos a questão inicial, na qual eu digo que pelo menos eu tentei, mas não consegui e então, suponhamos que entendam que se deve baixar a guarda... aí sim não seria inútil.
Mas então eu não sai do lugar... só minha consciência que ficou mais limpa.

terça-feira, abril 19

Roubei muita coisa de você, mas deixo minha gratidão pra ser jogada pela janela.

sexta-feira, abril 1

Nothing

Razão para escrever ainda tenho, nunca me faltou. A alma silenciosamente grita, ecoando dos meus dedos para seus olhos.Suas conclusões podem ser difusas, mas vai saber se essa não é a intenção da alma. Eu até compreendo os motivos dela, uma vez disseram – e muitos ecoaram - que se eu vivo organizando, posso desorganizar. Obrigada, Chico.

Nossas conclusões podem ser diferentes, são pontos de vista diferentes, experiências diferentes, caminhos divergentes. Diversas gentes.

Fácil, né? Só não tem qualidade.

A única questão é que não existe um eu nem um você, muito menos um nós.

Não existe nada.

sexta-feira, fevereiro 4

regredi?
um complexo idiota de átomos sem graça.
que acha que pensa
que acha que presta
que acha que vale a pena.
esse negócio de exteriorizar a podridão e blablabla não adianta coisa alguma.
é da espécie ter algum atrativo para ter presas sempre ao seu redor.
que coisa idiota esse negócio de ter atrativos. os seres humanos já são podres e só as outras espécies podem ver isso, quando os outros iguais a mim terão o mesmo nojo?
o problema não é tê-lo, é o que fazer com ele.

quinta-feira, fevereiro 3

"Ah, viver é tão desconfortável.
Tudo aperta: o corpo exige,
o espírito não pára,
viver parece ter sono e não poder dormir - viver é incômodo."

Clarice Lispector

quarta-feira, janeiro 12

Mudou

Ontem eu tava quase dormindo quando vi de longe uma luz no céu.
- A lua deve estar cheia - pensei.
Cheguei mais perto, mais perto...
Ah, que bobeira pensar isso. Era apenas o heliponto do mais novo hotel 5 estrelas de Campinas.

Receita Para Ser CULT/ALT

* mas não confunda com ctrl-alt

Primeiro aprenda a se sentir superior a todos. Consegue? Ok, passamos ao segundo passo.
Use roupas e acessórios retrô, mas não deixe que os outros descubram que elas são de marcas populares - se elas realmente forem. O objetivo é parecer que você quer estar no passado, usando colares da vovó e casacos do vovô.
Esqueça o jeans. Ele será uma peça rara no seu guarda-roupa. Você deverá usar roupas confortáveis de tecidos que eu não sei o nome.
Entenda de artes e filosofia. Pintura, fotografia, teatro, música, literatura... mas principalmente o cinema. Seja super fã do Chaplin e do Almodóvar e se conseguir conhecer mais alguns atores ou diretores, aprecie-os. Discuta de cinema com todos que conhece, até com os que não entendem, ensine-os tudo o que souber, e se não souber, invente.
Se não rolar cinema, fale sobre pensadores. Kant, Kracauer, Nietzsche... Não esqueça do Marx. Isso fará de você um cult e tanto!
Odeie a música POP. Lembre-se que você é diferente. Gênios da MPB, um pouco de música clássica e várias bandas européias e desconhecidas. E para dar aquele requinte, toque violão ou algum instrumento que te caracterize.
Escolha a dedo os locais que frequenta. Bares badalados não devem te agradar. Música ao vivo talvez, mas com muito bom gosto e não muito alto, para poder conversar sobre artes e filosofia. Cerveja é meio raro, você tem personalidade, oras! Beba pinga. Mas pinga boa, não me venha com essas industrializadas, tem que ser as artesanais direto de Minas Gerais.
Quando a opção é apenas um passeio, você deverá ir a museus, livrarias e essas coisas aí.
Possui redes sociais? Prefira o facebook, é mais descolado. Mas se tem orkut também, não se esqueça dos albuns com fotos dos artistas que você diz admirar. Entre nas comunidades a respeito deles também. Mas lembre-se: quanto mais desconhecido, melhor.
Você não pratica esportes. Você é contra a ditadura da beleza e esporte serve apenas pra isso. Para cuidar do corpo deve fazer meditações ou, no máximo, yoga, e cuidar da alimentação. Não precisa chegar a ser vegetariano - é radical demais para a sua cabeça -, mas pode comer apenas peixe, afinal, carne vermelha te lembra a crueldade com os bovinos, coitados.
Piercings e tatuagens são opcionais, pois estão banalizados e você é superior, você não gosta do que é comum.

Se você é mulher, tenha cabelo curto ou dreads.
Se você é homem, tenha barba ou dreads.
Se você é gay, orgulhe-se disso e namore sério.
Se você é bissexual, assuma para todos que faz sexo com, no mínimo, duas pessoas.
E nunca se esqueça: sua personalidade é forte, afinal, você resiste à sociedade!