segunda-feira, outubro 24

As Aventuras de Tássia II

Depois de uma noite de sono pesado, Tássia se levantou esperançosa.
Se arrumou rapidamente, colocou roupas leves pra aguentar o calor, prendeu o cabelo cantarolando uma pequena canção sobre garotas de cabelo preso e, finalmente, saiu de casa com uma bolsa preta, bem grande.
Já nas escadarias do hotel quase deu de cara com um moço e até pediu desculpas, mas pouco depois percebeu que foi inútil esse gesto. Ele era um misto de laranja com vermelho e vapor. Cheirava bem, agradava aos olhos, sorria com delicadeza e a olhava por dentro da alma. Para Tássia era apenas uma miragem e ficou observando aqueles olhos por muito, muito tempo, até acordar do transe ocasionado pelo vapor colorido.
Se recompôs e desceu as escadas. Entrou no carro, ligou uma música doída e dirigiu. Dessa vez não para longe, mas para perto. É só pegar aquele estradinha ó, que começa no fim dessa avenida, logo à esquerda você vai ver um prédio verde, pode entrar que é ali!
Carro estacionado, música desligada, coração abalado, óculos de sol no rosto. Quem não vê cara não vê nada. Subiu uns morrinhos aqui, outros ali... que lugar enorme!
Quando achou o que tanto procurava, não tinha certeza se era isso que queria. Afinal, idealizar demais não faz bem, você acaba esquecendo dos defeitos, que sempre estarão acompanhando qualquer ser.

quarta-feira, outubro 19

As Aventuras de Tássia I

Agora eu vou lhes contar uma história sobre uma pequena garotinha crescida que muito quis e nada conseguiu.
Como já disse, ela estava crescida. Crescidinha.
Vinha com seu carro, correndo por uma rodovia vazia, mascando um chiclé de menta e ouvindo uma música nostálgica, mas que a traduzia. O horizonte recortava o céu com suas serras molhadas pela neblina, mas era uma tarde bonita.
E rodou e rodou e rodou por vários quilômetros, chegando cansada ao destino, procurando apenas um hotel para passar uns dias. Entrou em seu quarto, desfez as malas, tirou o lenço da cabeça e sentou na cama, pensativa. Pensava no motivo para estar ali, pensava na loucura que era ali estar.
Quis traçar objetivos para aproveitar o tempo, quis achar um disfarce para não se entregar como forasteira, quis escrever seu discurso, quis treiná-lo para não vacilar.
Preferiu se entregar ao sono a pensar. Pensamentos a cansaram mais do que a longa viagem.
E de cansaço ela já estava cheia, teve longos meses para se tornar uma velhota cansada crescida.

sábado, outubro 15

you'll be a star in somebody else's sky

E então, velha que sou, comecei a me entender como tal.
Reconheci que minhas dores eram apenas a artrose e a osteoporose se manifestando.
Tudo o que eu não via, ou enxergava com deformidades foi corrigido pelos meus óculos.
O mau humor era da idade. Não que eu não o tivesse antes, mas foi piorado depois das angústias e frustrações de uma vida inteira.
A solidão era resultado das minhas escolhas, e dela eu não reclamava, até gostava.
As coisas perderam a graça, os bares ficaram desanimados e as fotografias em preto e branco.
E eu, achando que viveria pra sempre, só queria entender porque a velhice chegou tão cedo, geralmente levamos décadas para envelhecer... e não meses!

someday you'll have a beautiful life

Acordei sem saber onde estava. Olhei pela sala, meio abalada, mas me achei.
Vi pela cortina da janela que a chuva estava forte. "Que grande novidade!", pensei, já chovia há dias.
Afastei um cinzeiro fedorento de perto de mim, não identificando o batom vermelho decadente daquelas bitucas. Quem fuma aqui? O gato?
Demorei alguns minutos até coçar o rosto, a minha coçadinha básica antes de levantar da cama, gesto familiar de quem conhece ou conheceu meu sono. Coça a face, coça o nariz, coça o coração. Pena que coceira incomoda.
Enfim me levantei e achei meu relógio de pulso caído em algum canto. Relógio de pulso? Eu me lembro de ter tido um na quarta série, os segundos eram contados por uma careta sorrindo, de quando o tempo literalmente sorria pra mim.
Vendo as horas me lembrei que em poucos minutos eu tinha um compromisso. Enquanto corria de um lado pro outro da pequena kitnet, me perguntava o que havia feito antes de sair naquele sofá. Queria saber o que bebi e onde deixei minha sanidade.
Pega toalha, pega chinelo, o shampoo acabou, corre ali no armário pegar um novo. tava precisando trocar o chuveiro, esse tá ruim. O banho lavou a alma, mas eu ainda queria saber o que me aconteceu horas antes.
Sai do banho, procura roupa, se incomoda porque a calça ta apertada e amaldiçoa o chocolate por ser tão calórico. Escovei os cabelos enquanto comia uma maçã. Maçã? Escovei os dentes enquanto ouvia uma música preta, literalmente.
Chaves do carro, bolsa, a última olhadinha no espelho e...
É por isso que não me lembro...
"Os anos se passaram enquanto eu dormia"

terça-feira, outubro 11

Eu ofereço duas alternativas para os sedentos de amor:
Ou ama de verdade e se entrega, vivendo os momentos com intensa paixão até que o perecível se estrague.
Ou viva de um amor roubado, vivendo os momentos com intenso plágio até que a verdade os separe.

quem é mais... ?

E então eram duas pessoas sentadas no chão.
E naquele momento eu tive a maior das vontades.
Aquela de ir regredindo, aos poucos.
E voltar no dia em que eu disse "sim".
Mais ainda, ir até o dia em que eu disse "não".
Ou até quando me fizeram desacreditar.
Talvez, indo mais longe, quando a consciência perdi.
Depois, quis voltar até meu primeiro beijo, meu primeiro amor.
Mas a vontade ainda estava ali!
Quis ir mais adiante: daquela vez que um homem rodava duas crianças.
Senti que era pouco e fui mais longe,
como no dia que um solo de sax me deu a maior das provas de amor.
Voltei mais um pouco e vi piscinas, barbies e bebês.
Ou então pirulitos vermelhos e termômetros quebrados.
E quis retroceder até o momento em que nada havia de mim,
quando eu era mais um dentre 300 milhões,
e dali não evoluir.

Era a vontade da janela,
a vontade do "não",
a vontade do "nunca mais" que aflorou com suas razões.
Mas eu continuei ali, sentada num chão de banheiro.